A Gol, por exemplo, ingressou no Chapter 11 no início de 2024 e saiu em junho de 2025 após um amplo processo de renegociação. A Azul seguiu caminho semelhante em maio de 2025, ao recorrer ao mesmo mecanismo nos EUA. Mesmo a Latam, maior grupo aéreo da América do Sul, enfrentou situação parecida em 2020. Esses casos não são exceção: são o retrato de um setor estruturalmente vulnerável.
Mas se voar no vermelho é quase regra, como essas empresas se mantêm vivas? E, mais importante: quais lições gestores financeiros e empresários podem tirar dessa realidade para suas próprias empresas?
O setor aéreo opera com margens mínimas, pressionado por uma combinação de custos fixos altos e variáveis sujeitos a choques externos.
Mais de 60% dos custos de uma companhia aérea no Brasil são dolarizados. Isso significa que, mesmo recebendo em reais pelas passagens, grande parte das despesas é calculada em dólar — e aí mora o problema.
Um dos exemplos mais relevantes é o arrendamento de aeronaves, conhecido no setor como leasing. Em vez de comprar um avião à vista — algo que pode custar centenas de milhões de dólares —, as companhias firmam contratos de aluguel de longo prazo com empresas de leasing internacional. Esses contratos são atrelados ao dólar, o que torna a flutuação cambial um risco direto sobre a estrutura de custos.
Outro ponto crítico é a manutenção de aeronaves. Grande parte das peças, softwares de bordo e serviços de revisão são importados, pagos em moeda estrangeira e cotados em dólar. O mesmo ocorre com seguros e licenças operacionais, que também seguem padrões internacionais.
O maior vilão, porém, é o querosene de aviação (QAV). Ele representa sozinho cerca de 36% dos custos totais das empresas brasileiras e tem seu preço atrelado à cotação internacional do petróleo. A Petrobras, que praticamente monopoliza o fornecimento no Brasil, repassa variações cambiais e de barril diretamente para as companhias. Ou seja, se o dólar sobe e o petróleo dispara, o impacto é imediato no caixa das empresas.
Essa equação cria um cenário peculiar: mesmo que as companhias aéreas façam boa gestão operacional, o câmbio pode corroer margens rapidamente. Um voo planejado com custo X em janeiro pode custar 20% a mais em março apenas pela oscilação da moeda.
Além dos custos operacionais, as companhias carregam um fardo adicional: a judicialização. Estima-se que ações de passageiros e fornecedores representem mais de R$ 1 bilhão ao ano, valor que precisa ser provisionado e corrói a previsibilidade financeira.
Vender passagens não basta para gerar lucro. É preciso maximizar indicadores específicos do setor.
No setor aéreo, a rentabilidade não depende apenas de vender passagens. É preciso medir como cada assento gera receita em relação ao custo operacional. É aí que entram três métricas essenciais: ASK, RPK e load factor.
À primeira vista, pode parecer que um avião com 100% de ocupação é sinônimo de lucro. Mas não é tão simples. Se todos os assentos foram vendidos com tarifas muito baixas, a receita pode não cobrir custos fixos e variáveis (combustível, leasing, tripulação, manutenção).
👉 Exemplo prático:
O voo B, mesmo com menos passageiros, foi mais lucrativo porque o yield (receita média por quilômetro assento) foi maior.
Esse equilíbrio delicado entre capacidade oferecida, ocupação real e preço médio é o que faz as companhias aéreas usarem precificação dinâmica, promoções sazonais e gestão de rotas como instrumentos para ajustar sua margem.
Cada voo carrega depreciação, leasing, salários e manutenção. Por isso, a ocupação é vital: quanto maior o número de passageiros por rota rentável, menor o custo por assento.
O problema é que choques inesperados — como pandemia, crises cambiais ou alta do petróleo — reduzem a demanda e tornam a equação quase impossível.
Diante de margens tão frágeis, as companhias aéreas criaram uma espécie de manual de sobrevivência.
Nos últimos anos, Gol, Latam e Azul recorreram ao Chapter 11 nos Estados Unidos, um mecanismo jurídico que costuma gerar dúvidas no Brasil. Afinal, o que é isso e por que tantas companhias aéreas o utilizam?
O Chapter 11 faz parte da lei de falências norte-americana. Ele permite que uma empresa em dificuldades financeiras continue operando normalmente enquanto renegocia suas dívidas sob supervisão judicial. Em outras palavras, não é o fim do negócio, mas uma tentativa de reorganização.
Funciona assim, a companhia apresenta ao tribunal um plano de reestruturação, que pode incluir alongamento de prazos, descontos nas dívidas, conversão de débitos em participação acionária e até a captação de novos financiamentos — os chamados DIP financings (Debtor-in-Possession), linhas de crédito emergenciais que só existem nesse tipo de processo. O grande diferencial é que os credores precisam negociar dentro dessa estrutura legal, o que dá tempo e fôlego à empresa.
👉 Exemplo prático:
Aqui no Brasil não existe Chapter 11, mas temos a recuperação judicial (RJ) prevista na Lei nº 11.101/2005. A lógica é parecida, a empresa em crise apresenta um plano de pagamento e precisa da aprovação dos credores. A diferença é que, no Brasil, esse processo costuma ser mais moroso e, muitas vezes, não atrai capital novo como ocorre nos EUA.
Por isso, muitas companhias aéreas brasileiras optam por abrir subsidiárias no exterior ou utilizar estruturas internacionais para acessar o Chapter 11. É um mecanismo mais flexível, ágil e, em alguns casos, mais eficiente para quem precisa renegociar com credores globais.
Em resumo: o Chapter 11 funciona como um “choque de gestão financeira” imposto pela Justiça, que obriga credores e empresa a encontrarem uma saída viável, enquanto no Brasil a recuperação judicial pode se arrastar, sem garantir liquidez imediata.
O setor é historicamente marcado por fusões e aquisições. O objetivo é óbvio: ganhar escala, sobrepor rotas e diluir custos fixos. Foi assim com a absorção da Varig pela Gol e com a discussão recorrente sobre uma possível união Gol–Azul.
Reduzir ou expandir frotas conforme a demanda é prática constante. Cancelar rotas deficitárias, renegociar leasing de aeronaves e ajustar a malha aérea são medidas que evitam perdas maiores.
As companhias também exploram técnicas avançadas de precificação dinâmica, segmentando tarifas e ampliando receitas acessórias (bagagens, assentos premium, programas de milhagem). Essas fontes adicionais ajudam a compensar a volatilidade do core business.
O setor aéreo tem relevância estratégica para o país. Cada rota conecta serviços, turismo e cadeias produtivas, com impacto direto no PIB. Por isso, governos intervêm em momentos críticos.
Em 2024 e 2025, discutiu-se a criação de um fundo de até R$ 6 bilhões, via FNAC ou BNDES, para dar garantias às aéreas renegociarem dívidas e acessarem crédito. Ainda que controverso, o apoio público se explica: a quebra de uma companhia aérea gera caos econômico e social imediato.
A aviação ensina, na prática, como gerir negócios expostos a riscos elevados. Os mesmos mecanismos usados para manter aviões no ar podem ser aplicados em empresas de qualquer setor.
Poucos setores estão tão expostos à volatilidade quanto a aviação. Combustível, câmbio e juros são variáveis que fogem ao controle das empresas, mas determinam sua sobrevivência. Para reduzir esses riscos, as companhias utilizam estratégias de hedge, ou seja, mecanismos de proteção financeira que funcionam como um seguro contra oscilações bruscas.
As aéreas podem contratar derivativos que fixam o preço futuro do querosene de aviação. Se o barril de petróleo dispara no mercado internacional, o contrato de hedge compensa a diferença. Assim, mesmo que o combustível suba 20% em três meses, a companhia paga um valor já acordado, mantendo previsibilidade no caixa.
As companhias aéreas brasileiras, em diferentes momentos, já anunciaram operações de hedge que garantiam parte de seus gastos com QAV por até 12 meses, protegendo o fluxo de caixa em períodos de alta do petróleo.
Como leasing, manutenção e seguros são dolarizados, empresas fazem contratos futuros de dólar para travar a cotação. Isso impede que uma disparada da moeda eleve subitamente os custos.
Por exemplo, uma indústria química que importa insumos dos EUA pode usar hedge cambial para travar o dólar a R$ 5,00 no próximo semestre. Se a moeda chegar a R$ 5,50, ela não sofre o impacto total.
Embora menos comum na aviação, companhias também podem proteger dívidas atreladas a taxas flutuantes, evitando que um aumento nos juros internacionais comprometa ainda mais a alavancagem.
Empresas intensivas em insumos — como indústrias de alimentos, farmacêuticas ou de energia — podem usar hedge de commodities (açúcar, milho, energia elétrica) e hedge cambial para importar equipamentos. O objetivo não é eliminar o risco, mas transformar um custo volátil em previsível, permitindo melhor planejamento financeiro.
Na aviação, elasticidade de custos e capacidade é a habilidade de ajustar rapidamente o tamanho da operação conforme a demanda — sem comprometer a estrutura de longo prazo. Em outras palavras: expandir quando o mercado aquece e contrair quando ele esfria, preservando a sustentabilidade financeira.
Durante crises, como a pandemia, essa elasticidade foi vital. Companhias reduziram rotas, renegociaram contratos de leasing, colocaram parte da frota em “hibernação” (preservação controlada dos aviões) e ajustaram o quadro de pessoal.
Quando a demanda começou a se recuperar, reverteram o movimento com agilidade, recolocando aeronaves em operação.
Lição prática para empresas de qualquer setor:
👉 Exemplo prático: Uma indústria que opera com turnos extras pode ajustar a produção reduzindo ou ampliando horas de trabalho conforme a demanda. Da mesma forma, um escritório contábil pode adotar modelos de atendimento sob demanda — alocando consultores apenas para projetos ativos — em vez de manter equipes ociosas.
Em síntese, elasticidade é gestão de fôlego: quanto mais a empresa consegue modular seu tamanho e seus custos em tempo real, maior sua chance de atravessar turbulências sem precisar recorrer a cortes drásticos ou endividamento emergencial.
Em setores de alta complexidade, como o aéreo, a diferença entre sobreviver ou quebrar está na capacidade de antecipar crises de liquidez. Não basta apenas gerar receita: é preciso garantir que haverá caixa suficiente para manter a operação mesmo em cenários adversos.
Uma prática comum é renegociar dívidas quando a empresa ainda está saudável. Alongar prazos, trocar dívidas caras por mais baratas ou diversificar fontes de financiamento evita que a companhia fique encurralada em momentos de turbulência.
A Azul e a Gol, por exzemplo, renegociaram contratos de leasing com menos aviões ativos durante a pandemia, evitando desembolsos elevados com aeronaves paradas.
Um recurso sofisticado é a criação de pools de recebíveis. Nessa modalidade, a empresa reúne recebíveis futuros (como vendas parceladas em cartão de crédito, duplicatas ou contratos de longo prazo) e usa esse fluxo como garantia para captar crédito com taxas menores.
Um exemplo disso é quando uma rede varejista pode agrupar todas as vendas parceladas em cartão e usá-las como colateral em uma operação de crédito estruturado, recebendo caixa imediato para reforçar o capital de giro.
Outra estratégia é usar ativos estratégicos como colateral. Companhias aéreas, por exemplo, oferecem aeronaves, programas de fidelidade ou até rotas como garantia em negociações de crédito.
O Smiles, programa de milhagem da antiga Varig, foi usado como ativo para negociações financeiras e acabou sobrevivendo mesmo após a falência da empresa.
As empresas de outros setores podem usar desse método também, por exemplo:
O segredo é transformar ativos ilíquidos em instrumentos de crédito, ampliando o fôlego sem esperar a crise explodir.
Um dos segredos de sobrevivência das companhias aéreas em crise é cortar rotas deficitárias e priorizar aquelas que realmente geram caixa. Parece simples, mas exige disciplina: manter voos pouco rentáveis só para “marcar presença” em determinados mercados pode consumir milhões sem retorno.
Durante a pandemia, a Azul reduziu a frota ativa e concentrou suas operações em rotas regionais de maior demanda (como Campinas–Manaus), suspendendo trajetos com baixa ocupação. A Gol fez o mesmo, mantendo apenas voos essenciais definidos em acordo com a ANAC.
Essa decisão de “encolher para sobreviver” preserva a liquidez e permite redirecionar recursos para destinos rentáveis ou estratégicos.
As empresas podem aplicar uma matriz semelhante ao “mapa de rotas aéreas”, mas para clientes ou produtos:
Quadrantes de baixa margem/alto custo devem ser eliminados ou renegociados.
Um dos grandes aprendizados da aviação é que indicadores globais não bastam. O lucro líquido trimestral ou a receita total podem esconder gargalos sérios. Por isso, o setor trabalha com métricas de eficiência unitária — indicadores que mostram a rentabilidade por unidade mínima de produção ou serviço.
Na aviação, a principal métrica de custo é o CASK (Cost per Available Seat Kilometre), ou custo por assento-quilômetro disponível.
A fórmula para esse custo é:
Se uma companhia aérea gastou R$ 1,8 milhão em custos totais para oferecer 180 milhões de ASK, o CASK será de R$ 0,01 por assento-km.
Esse indicador permite comparar eficiência entre companhias de tamanhos diferentes.
Já a receita é medida pelo RASK (Revenue per Available Seat Kilometre), calculado a partir da receita operacional dividida pelo ASK.
A fórmula para esse indicador é:
Se a receita foi de R$ 2,5 milhões sobre 180 milhões de ASK, o RASK será de R$ 0,014. A comparação entre RASK e CASK mostra se a companhia gera margem positiva por unidade.
A tomada de decisão deve se basear em métricas unitárias, pois elas revelam a real eficiência da operação e permitem ajustes rápidos, antes que os prejuízos se acumulem.
Automatizar tarefas operacionais reduz erros e libera tempo da equipe para atividades de maior valor.
Exemplo na aviação: check-in automático, despacho de bagagem via totens e monitoramento digital de manutenção de aeronaves.
Exemplo fora da aviação: em um escritório contábil, a automação da emissão de notas fiscais e da conciliação bancária reduz retrabalho e evita multas.
Como vimos, parte relevante dos custos das aéreas é atrelada ao dólar (leasing, manutenção, seguros). Revisar contratos dolarizados pode incluir:
Uma indústria que importa insumos por exemplo, pode firmar contratos híbridos, com parte dos pagamentos fixados em reais, reduzindo a volatilidade cambial.
Compliance fiscal significa garantir que todos os processos tributários e obrigações acessórias estejam em conformidade com a legislação. Isso evita autuações, multas e passivos ocultos que corroem a margem de uma empresa.
Por exemplo, empresas de uma rede de varejo que não controla créditos de ICMS ou PIS/COFINS, pode perder competitividade. Implementar compliance fiscal significa auditar periodicamente tributos, revisar regimes de enquadramento e usar sistemas integrados para eliminar erros.
A eficiência contínua não é um projeto pontual, mas uma cultura de revisão permanente. Automatizar, renegociar contratos e fortalecer compliance garante margens mais saudáveis e evita surpresas desagradáveis.
Companhias aéreas vivem no vermelho porque operam em um dos setores mais complexos e voláteis do mundo. Custos dolarizados, dependência de combustíveis fósseis, passivos judiciais e choques de demanda tornam o lucro um desafio constante.
No entanto, essas empresas também mostram que sobreviver é possível. Reestruturações, cortes estratégicos, fusões e precificação inteligente são lições aplicáveis a qualquer negócio.
Para gestores financeiros, contadores e empresários, o recado é claro: disciplina, dados e cenários realistas são o combustível que mantém empresas no ar — mesmo quando as turbulências parecem incontroláveis.